Por: Tainah Pereira, internacionalista e Coordenadora Política do Mulheres Negras Decidem e Beatriz Amparo, socióloga e Gerente de Mobilização e Narrativas do Instituto Marielle Franco, para o Instituto Patrícia Galvão

 

A política brasileira está em uma encruzilhada. O debate sobre a reforma do Código Eleitoral, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, coloca em jogo não apenas regras procedimentais, mas os rumos da nossa democracia. Em meio às mudanças propostas, corre-se o risco de retroceder o que foi arduamente conquistado em termos de participação política das mulheres — especialmente das mulheres negras, indígenas e trans, que enfrentam múltiplas barreiras para acessar os espaços de poder.

É nesse contexto que se torna ainda mais relevante a recente pesquisa de opinião “Por mais mulheres na política”, realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo IPEC, com apoio do Ministério das Mulheres. Os dados revelam o que muitas ativistas, estudiosas e candidatas já sabem há tempos: a população brasileira quer ver mais mulheres nos espaços de decisão. E mais do que isso — reconhece o impacto positivo dessa presença para o conjunto da sociedade.

De acordo com a pesquisa, 9 em cada 10 pessoas entrevistadas concordam que a presença de mulheres na política melhora o ambiente político e contribui para a sociedade como um todo. A percepção de que a política é lugar de homens, ainda predominante nos bastidores partidários, parece cada vez mais fora de sintonia com a vontade popular. A imensa maioria das pessoas consultadas (96%) declara que votaria ou poderia votar em mulheres para cargos públicos de relevância. E 89% afirmam que gostariam de ver mais mulheres candidatas nas próximas eleições.

Esses números, no entanto, contrastam com a realidade da sub-representação feminina no Brasil. Embora sejamos mais da metade da população, as mulheres ocupam menos de 20% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Quando recortamos por raça, o abismo é ainda mais profundo: mulheres negras, que são mais de 28% da população, ocupam cerca de 4% das cadeiras no Congresso Nacional.

Diante desse cenário, é preciso afirmar com clareza: não basta aumentar o número de mulheres na política. É fundamental garantir paridade de gênero com justiça racial, assegurando que as mulheres mais afetadas pelas desigualdades também ocupem os espaços de decisão, em condições reais de exercer poder político. A reforma do Código Eleitoral não pode ser um obstáculo para isso — ao contrário, precisa ser uma ferramenta de transformação.

A pesquisa do Instituto Patrícia Galvão também aponta os principais desafios enfrentados pelas mulheres que tentam se inserir na política: 31% das pessoas ouvidas reconhecem que as mulheres não recebem apoio dos partidos ou de lideranças políticas quando decidem se candidatar, e 41% afirmam que as mulheres sofrem assédio e ataques
machistas, dentro e fora dos partidos. Esses obstáculos estruturais mostram que a desigualdade de gênero na política não é apenas uma questão de vontade individual ou competência. Mulheres são sistematicamente desestimuladas a participar do ambiente político, que é excludente e resiste à mudança. A violência política contra mulheres é uma expressão sistêmica de desigualdade que compromete a pluralidade do sistema político e enfraquece a democracia como um todo.

Neste sentido, mecanismos como cotas de candidaturas e de financiamento eleitoral são ferramentas indispensáveis para corrigir distorções históricas. E é justamente aí que mora o risco do novo Código Eleitoral: entre as propostas em debate, estão medidas que podem enfraquecer ou até extinguir os instrumentos que hoje garantem alguma equidade nas disputas, como a obrigatoriedade do preenchimento de pelo menos 30% das listas dos partidos com candidaturas femininas.

O povo brasileiro, no entanto, parece mais avançado que o próprio sistema político. A pesquisa mostra que 59% da população é favorável a cotas mínimas de candidaturas de mulheres para cargos legislativos, e 80% defendem que os partidos que não cumprem as regras de cotas devem ser punidos. Um dado ainda mais revelador: 86% dos que apoiam as cotas acreditam que os partidos deveriam concorrer a menos vagas caso apresentem nominatas inteiramente masculinas.

Tais números evidenciam um desejo coletivo por mais justiça e representatividade — algo que deve ser refletido nas normas que regem o processo eleitoral. Em vez de retroceder, o novo Código Eleitoral deve ser uma oportunidade para aprofundar os avanços: tornar obrigatória a paridade de candidaturas com critérios de equidade racial; garantir sanções reais para partidos que não investem em candidaturas diversas; assegurar proteção contra a violência política de gênero e raça; e reconhecer que a democracia só será plena quando for compartilhada.

O que está em jogo não é apenas o presente das disputas eleitorais, mas o futuro da democracia brasileira. O fortalecimento da democracia requer ações que não apenas ampliem a participação das mulheres, mas que também assegurem sua permanência e autonomia nos espaços de poder. Combater a violência política de gênero e raça, com medidas específicas e eficazes, é um passo fundamental para criar um ambiente político verdadeiramente inclusivo e diverso. Sem isso, qualquer avanço legislativo no Código Eleitoral será insuficiente para transformar as estruturas excludentes que caracterizam o sistema político brasileiro.

É hora de escutar as vozes das ruas, dos bairros, das periferias, dos quilombos, das aldeias, das universidades, das redes de cuidado e luta por justiça. É hora de escutar as mulheres brasileiras — e, especialmente, aquelas que sempre estiveram à margem da política institucional, mas que sustentam a vida e a democracia todos os dias. A presença das mulheres na política não é uma concessão, é um direito. E mais do que números, trata-se de disputar o conteúdo da democracia: que políticas serão feitas, para quem e com qual horizonte de país. Como aponta a pesquisa, a maioria das pessoas acredita que áreas como saúde, educação, segurança e trabalho avançariam com mais mulheres nos espaços de poder. São justamente essas áreas que estruturam a vida cotidiana da maioria da população — e que precisam ser pensadas a partir das experiências e prioridades das mulheres, sobretudo das mulheres negras, que historicamente garantem essas políticas na prática.

A democracia brasileira não pode ser refém de um sistema político que opera pela exclusão. O novo Código Eleitoral deve ser construído com participação social ampla, com diálogo com as organizações de mulheres, com os movimentos negros, com a sociedade civil que luta por um país mais justo. É tempo de reafirmar que representatividade importa — e que igualdade formal sem medidas estruturais de inclusão é apenas mais uma forma de manter tudo como está.

A democracia que queremos precisa de mais mulheres em suas diversidades!

Por mais mulheres na política: a urgência da paridade com justiça racial no debate sobre o novo Código Eleitoral