“Vamos à luta companheiros, para que a opressão e a exploração terminem nesse país. Para que esse país, além de vir a ser uma efetiva democracia racial, esse país, tem que ser efetivamente uma democracia”.

(Lélia Gonzalez)

Vereadora Flávia Hellen (foto Instagram)

É inegável que estamos a caminho de uma revolução no que diz respeito à forma de se pensar e construir a política no Brasil. Os resultados das duas últimas eleições nos trazem um reflexo significativo sobre as diversas identificações que foram expressas através do voto. Para além das figuras políticas que representam a necrosidade fudamentalista que no momento governa o nosso país, tivemos nesse caminho uma expressão significativa de votos destinados a mulheres negras e pessoas lgbtqia+ como um todo. Elegendo, assim, mandatos oriundos de movimentos sociais feministas e de luta por igualdade racial que esperançam a continuidade da luta por representatividades negras. Nas incidências por políticas públicas que estejam ligadas à garantia de direitos, temos o exemplo de Paulista, cidade localizada a 15 km de Recife, terra natal do querido Gil do Vigor, que somente no último pleito elegeu a primeira vereadora negra da cidade, Flávia Hellen (foto).

Fui candidata em Recife, Pernambuco. Disputei a cadeira de vereadora ao lado da grandiosa Elaine Cristina, mãe de Pedro, criança portadora de uma síndrome rara, que faz uso do óleo de maconha e que inspira Elaine a lutar pela legalização da maconha e pela garantia de direitos de mães e crianças atípicas desde 2014.

Eu sou uma mulher sobrevivente do sistema prisional, tenho duas filhas, sou ativista de direitos humanos, educadora popular e construo ações de advocacy há sete anos com jovens, mães negras, indígenas e periféricas na região metropolitana do Recife. Atuo junto a coletivos, mandatos e organizações sociais negras, indígenas e periféricas pautando o direito à vida, o bem viver e a garantia de políticas públicas que agreguem com respeito aos diversos corpos dissidentes que ocupam as favelas dessa cidade.

“Daria um filme”, como bem diz o trecho da música “Negro Drama” de Racionais, em que Mano Brown fala da solidão de sua mãe ao criar seus filhos negros em uma cidade de concreto e aço que não foi feita e muito menos idealizada para eles.

Conquistar a suplência na Câmara de Vereadores do Recife com 2.965 votos em meio à pandemia e com poucos recursos; estando em uma cidade historicamente conhecida no Nordeste pela política coronelista que até hoje mantém em foco filhos e netos de famílias tradicionais ricas, heteronormativas e brancas; estando em um coletivo de mulheres negras, mães, faveladas e não acadêmicas, faço profundas reflexões sobre a legitimação do silenciamento que até hoje marca a nossa trajetória política. E também sobre quais estratégias e caminhos possíveis para viabilizar a agenda de transformação política defendida há anos por movimentos negros, indígenas e de mulheres, principalmente negras. Trazendo o debate para o campo da esquerda, devemos refletir sobre as práticas de efetivação dessas pautas e agendas de luta, principalmente sobre quais são as possibilidades reais de viabilização de candidaturas, vida e carreiras políticas das mulheres negras e pessoas lgbtqia+ racializadas para além das que já são pautadas por nossos próprios corpos quando ocupamos esses locais.

Foto da autora

Pretas Juntas começou com Ingrid Farias e Larissa Themonia, mulheres também negras conhecidas nacionalmente por suas ações políticas, que tiveram — sem justificativa — suas filiações negadas. Somos um projeto político coletivo de corpos dissidentes, vindos de outros coletivos de periferia e mulheres. Nossas mobilizações e ações na rua funcionavam como em um quilombo: com respeito, amor e união pelas mulheres negras e pessoas racializadas que passaram conosco por esse processo, pessoas essas marcadas pelo racismo, pelo sexismo e pela transfobia. Contamos também com companheires e grandes amigues não racializados (que eram de correntes menores do partido e dos movimentos sociais em que levantávamos a pauta) e entendiam seu local de privilégio na luta, se uniram a nós por um desejo de construir a política em Recife partindo da perspectiva das mulheres negras, antiproibicionistas e de territórios periféricos que sempre foram colocados no local da não identificação política.

Foto divulgação campanha (Instagram pessoal da autora)

Elaine e eu fomos candidatas em 2020, em meio a um cenário político incerto pelos desmontes de direitos, mas sobretudo pelos atos de violência política contra mulheres que traziam respostas de enfrentamento desde 2018, com a irreparável perda de Marielle Franco.

Mesmo com a autorização da divisão de cotas de raça e gênero ainda em 2020, o valor que recebemos do fundo partidário foi menor que os valores destinados a candidaturas brancas e menor também que o valor destinado a outras candidaturas de homens negros. Fomos divididos em grupos e jogados a uma disputa política que nos classificou pelo tempo de trabalho político atrelado ao partido. Vivemos desde a distribuição do fundo partidário até a inconclusão (que ainda é o momento) da nossa prestação de contas; um processo de racismo e silenciamento de nossas demandas como mulheres negras políticas que somos.

Demarcando bem nesse processo a pirâmide social que Angela Davis traz, estávamos nós, mulheres negras, abaixo da linha esperada de potencialidade de voto e carreira política.

Dos recursos partidários, pouco sobrou para nossa alimentação e sustentabilidade enquanto candidatas. Acompanhamos os candidatos da majoritária com seus vastos materiais na rua, com mais de um carro, com uma equipe imensa… E lá estávamos nós, que muito mal tínhamos recursos para alimentação, com um amigo que tinha um carro e aceitou o pouco que podíamos pagar (Salve, Virgílio!). Inclusive, na maioria das vezes, era nossa dirigente e coordenadora de campanha Ingrid Farias — a qual saúdo aqui como grande referência de nosso caminho que com muito afeto, respeito e articulação investiu recursos próprios — quem custeava nossa alimentação.

Foto arquivo pessoal da autora.

Saíamos, Elaine e eu, às 6 horas da manhã de casa e só retornávamos à meia noite. Às vezes a gente só tinha dinheiro para um caldo de cana e uma coxinha no café da manhã. Nesse pique, passei quase 3 meses sem conseguir ver minhas filhas por medo de infectá-las (afinal, ainda não tínhamos vacinas disponíveis e a insegurança sanitária era muito presente). Elaine enfrentou várias crises de epilepsia com Pedro e a solidão por não ter sua mãe, que era seu norte, ao lado.

Tínhamos medo também. Recebemos ameaças por inbox em nossa página, fomos expostas por vereadores conservadores. A gente se segurava uma na outra, chorávamos junto ao nosso grupo, mas, acima de tudo, acreditávamos que assim como Antonieta de Barros, Lélia Gonzalez, Marielle Franco e outras ancestrais, nosso legado traria resultados atemporais; nossa campanha estava na rua e na mão do povo, nada iria nos impedir.

Print arquivo pessoal da autora.

Analiso com angústia o grau de descaso que vivemos — nossa candidatura teve a força das ruas, falávamos com a força da juventude e das mulheres negras periféricas sobre construir políticas públicas que atingissem familiares de pessoas sobreviventes do sistema prisional, sobre cotas raciais e de gênero que pautem a comunidade lgbtqia+ nos editais públicos da cidade. Falamos sobre a responsabilidade da nossa cidade com as mães e crianças atípicas que transitam e crescem nela. Foram 2.965 pessoas que expressaram, em Recife, o desejo de uma nova política, uma política que pautasse os corpos dissidentes que ocupam a cidade. Essas pessoas, também através do voto, trouxeram o desejo de se ter um mandato negro e de periferia que fosse combativo contra os absurdos retrocessos fundamentalistas existentes em nossa Câmara de Vereadores.

Nessa caminhada, saúdo as irmãs que nessa disputa — que mais parece uma guerra voraz de interesses — tiveram suas vozes, corpos políticos e candidaturas, silenciadas e deslegitimadas. Em especial, Sully Flor, mulher negra que após quase 10 anos trabalhando nas ruas para candidatos políticos decidiu se candidatar e teve sua candidatura inviabilizada.

Os caminhos que cruzam as mulheres sem medo são caminhos desafiadores, principalmente quando essa mulher sem medo tem o corpo negro e transita entre os mundos dos acessos e das vulnerabilidades. A campanha política de uma mulher negra sempre vem atrelada a um levante de sonhos igualitários e à necessidade de transformação política que nossos corpos bem conhecem. Porém, independente do local e da pauta que essa mulher ocupe, infelizmente, a sua presença nessa espaço não será vivida de forma saudável enquanto o debate de gênero e raça não for uma prioridade nos espaços políticos institucionais que historicamente são feitos pela perspectiva de acolhimento ao modelo político masculino branco, cis e heteronormativo.

Observo a potencialidade de transformação de uma campanha como a nossa também no medo branco da patroa de minha mãe, que no período da campanha disse:

“Não quero que sua filha ganhe as eleições Rosa, se ela ganhar não vai querer que você trabalhe mais aqui.”

Eu sou Débora Aguiar, mãe de Maria Clara e de Nina Odara, filha da cuidadora de idosos Rosileide Barboza e de Marcos Eduardo Lima de Aguiar, homem morto quando eu tinha 11 anos na guerra às drogas que atinge as famílias negras e periféricas brasileiras.

Escrevo e finalizo esse texto da cozinha da casa da minha mãe, onde voltei a morar com minhas filhas por não conseguir emprego após a campanha. Elaine, minha companheira de chapa, faz rifas para custear as fraldas de seu filho Pedro, pois o benefício de menos de um salário mínimo não garante uma vida digna para os dois. Mesmo como primeiras suplentes, não recebemos nenhum preparo ou acolhimento político do partido pelo qual lançamos nossa candidatura. Nos encontramos de volta em nossas ações políticas, lutando contra o esquecimento político em meio a um Brasil governado como uma bomba de descaso e necrosidade política cujos alvos são corpos como os nossos.

Foto Instagram da autora

Texto por: Débora Aguiar (educadora — ativista de direitos humanos e articuladora MND)

Coluna MND — Mulheres negras e política, um tema incisivo para além do slogan partidário sobre a nossa participação