Na foto Dani Nunes, mulher negra, trans, articuladora política do Mulheres Negras Decidem e militante petista

Diversidade na Fachada, Exclusão na Estrutura: Os limites da representatividade negra e trans no interior dos partidos políticos

Por: Fabiana Pinto, Coordenadora de Desenvolvimento de Lideranças MND

Os partidos políticos são, em tese, os pilares da democracia representativa. São eles que abrem — ou deveriam abrir — caminho para que diferentes setores da sociedade disputem e exerçam o poder político. No entanto, quando olhamos para dentro dessas estruturas, especialmente seus processos internos de eleição e decisão, o que se revela é um sistema profundamente excludente. As disputas internas, que deveriam ser expressão da democracia viva, se tornam muitas vezes um filtro violento contra candidaturas e lideranças negras, especialmente mulheres, pessoas trans e travestis.

Embora a legislação brasileira tenha avançado ao estabelecer cotas de gênero e raça para candidaturas e recursos de campanha, o que se encontra, neste momento, em ameaça no Senado Federal, isso ainda não garante acesso real ao poder dentro dos partidos. A estrutura interna, ainda dominada por homens brancos cis, continua controlando quem recebe apoio, visibilidade, verba e espaço a partir das direções partidárias. 

Nos partidos progressistas — como o PSOL, Rede e PT — os discursos sobre diversidade são frequentes. Mas quando chega a hora da prática, da definição das chapas, da alocação de recursos ou da composição das executivas, a resistência aparece. São nesses momentos que a ideia de que “a política é lugar de todos” colide com os mecanismos de manutenção do poder tradicional. Esses conflitos não são teóricos. São concretos. E têm nomes, rostos e consequências.

No PSOL: promessas de diversidade que não se sustentam

Um caso emblemático ocorreu no PSOL em São Paulo, nas eleições municipais de 2020. Keit Lima, mulher negra, articuladora política do Mulheres Negras Decidem e de movimentos de juventude, denunciou que receberia pouco mais de R$ 9 mil de fundo eleitoral para sua candidatura a vereadora — um valor insignificante frente às campanhas mais robustas de candidatos homens, em sua maioria brancos. Keit representava exatamente o perfil que o partido dizia priorizar: mulher, negra e de movimento social. A frustração dela revelou o abismo entre o discurso antirracista do partido e a sua prática nas disputas internas por recursos e estrutura. Mesmo com regras de distribuição por cotas de gênero e raça no estatuto do partido, a efetivação dessas normas depende de decisões locais — onde, muitas vezes, prevalece o favoritismo por quem já tem alianças antigas e trânsito nos bastidores do partido. Keit Lima, como tantas outras mulheres negras, entrou no processo pela porta da frente, mas foi empurrada para o fundo da sala.

Por outro lado, existem disputas internas que valem a pena e que nos orgulhamos. Em Porto Seguro (BA), Gabriella Borges, também conhecida como Nega Van, mulher negra, travesti e articuladora política do Mulheres Negras Decidem, teve uma história no PSOL marcada por enfrentamentos e conquistas. Em um cenário de disputas internas, onde a presença de pessoas trans e negras ainda encontra barreiras estruturais, Gabriella venceu resistências e se tornou a primeira travesti a presidir uma direção municipal de partido político no Brasil. Sua ascensão à presidência do PSOL em Porto Seguro foi um marco histórico e exemplo de como é possível disputar e conquistar espaços de poder por dentro das estruturas partidárias.

Em 2022, Gabriella foi candidata a deputada estadual, ampliando sua visibilidade e consolidando seu nome como uma das principais referências da política negra e trans na Bahia, e em 2024, foi cabeça de chapa na prefeitura de Porto Seguro. Sua trajetória mostra que a disputa por dentro dos partidos não é fácil – mas é possível. Gabriella é a prova de que, com coragem e sobretudo organização e apoio coletivo, pessoas historicamente excluídas podem não apenas entrar, mas também liderar e ter experiências de transformação nos partidos políticos progressistas.

Na Rede: um embate entre mulheres e a judicialização de disputas internas

Na Rede Sustentabilidade, a disputa interna se acirrou em 2025, entre dois grupos liderados por mulheres: Marina Silva, fundadora do partido, e Heloísa Helena. A briga envolveu disputas judiciais, acusações de fraude em convenções estaduais e divergências políticas sobre a condução do partido — especialmente no apoio ao governo federal.

De um lado, Marina e sua base defendiam uma linha de maior alinhamento com o governo Lula e com a pauta ambiental internacional. Do outro, Heloísa Helena e seu grupo acusavam a cúpula do partido de tentar “tomar o controle” por meio de manobras institucionais. As disputas revelaram que, mesmo quando mulheres negras ocupam espaços centrais, os embates de poder podem se tornar tão violentos e institucionalmente complexos quanto em estruturas majoritariamente masculinas. Apesar da visibilidade de Marina Silva como uma das poucas mulheres negras com projeção nacional na política institucional, a Rede também não é um espaço isento das disputas de fundo entre diferentes visões de mundo — e que, por vezes, fragilizam a participação de figuras negras que não estão alinhadas à maioria.

No PT: a construção de uma candidatura negra e trans como ato político

Talvez um dos movimentos mais potentes e simbólicos recentes tenha sido a formação da Chapa Negra “Pela Representatividade no PT”, lançada em maio de 2025 para disputar vagas no Diretório Nacional do partido. Em movimento paralelo, Dani Nunes, mulher negra, trans, articuladora política do Mulheres Negras Decidem e militante da base petista, a chapa foi composta por 204 pessoas — majoritariamente negras, mulheres, LGBTQIA+, pessoas com deficiência e jovens de periferia se lança como candidata a presidência nacional do PT. Diferente da lógica de “ocupar espaços individuais”, Dani e sua articulação coletiva decidiram disputar a estrutura de comando partidário de forma ampla, por dentro das regras do partido, mas tensionando seus limites históricos. O manifesto de candidatura foi direto:

“A diversidade do PT não pode ser apenas simbólica. Queremos estar nos espaços de decisão, na política do dia a dia, nos orçamentos, na narrativa, nas prioridades do partido.”

Dani Nunes reforça que “… Ouvimos constantemente que o PT precisa voltar para a base, mas quem fala repetidamente isso ou não está ou nunca esteve (na base). Enquanto uma mulher negra, trans, pobre e moradora da Zona Oeste do município do Rio de Janeiro nunca saí da base. Sei as dificuldades do transporte público lotado, das chuvas intensas que alagam ruas e estragam os móveis das casas, de ver minhas vizinhas e vizinhos sendo torturados por uma escala de trabalho abusiva de 6×1, da falta de remédios nas unidades básicas de saúde, da degradação do meio ambiente pela especulação imobiliária… Isso já me gabarita a ocupar a presidência do maior partido da América Latina pois sei como a ausência de políticas publicas afetam os corpos do maior grupo demográfico do Brasil, o de pessoas negras, em especial as mulheres. Disputar a presidência nacional do PT, enquanto a primeira mulher negra e trans a ter esta possibilidade, é exigir reparação histórica também das pessoas que se dizem aliadas das pautas de pessoas minorizadas.”

Essa articulação nasceu como resposta à ausência real de pessoas negras na instância máxima de direção do PT, que mesmo sendo um partido com forte base popular e discurso antirracista, ainda é hegemonicamente branco em sua cúpula. Na disputa interna nas últimas semanas, integrantes negros, indígenas e LGBTs que compõem ou articulam a formalização da chapa, foram ameaçados de perderem cargos caso insistisse na permanência da referida chapa nacional. A candidatura de Dani Nunes mostrou que a disputa não é apenas por presença — mas por poder. E poder dentro de partidos se conquista enfrentando estruturas, alianças antigas, acordos e práticas que, embora revestidas de institucionalidade, continuam afastando lideranças negras e dissidentes das mesas onde se decide o futuro da política.

Esses episódios não são exceções. São expressão de um padrão. Mulheres negras, trans e travestis são, muitas vezes, chamadas para compor estatísticas, fotos de campanha, discursos de diversidade. Mas quando se trata de fundo eleitoral, de tempo de televisão, de comando de partido, a porta se fecha. Ou pior: se abre apenas com vigilância e boicote. Mesmo nos partidos que se afirmam de esquerda, progressistas e defensores dos direitos humanos, as barreiras se mantêm. E mais: são frequentemente naturalizadas sob o manto da “governabilidade interna” ou da “experiência política”.

A disputa real exige estrutura, respeito e reparação. Se queremos que a política brasileira avance em representatividade verdadeira, é preciso reestruturar os mecanismos internos dos partidos. Cotas são importantes — mas não bastam. Acesso a recursos, formação, visibilidade e, principalmente, à estrutura de decisão são os diferenciais. As mulheres negras, trans e travestis não querem mais estar apenas nas margens ou nos rodapés dos estatutos. Querem estar no centro. Disputando direção partidária, controlando orçamentos, coordenando campanhas. Querem estar onde sempre estiveram nos territórios, mas agora com poder real de decisão. E a hora para essa disputa já chegou, e é exatamente isso que estamos fazendo.

Diversidade na Fachada, Exclusão na Estrutura: Os limites da representatividade negra e trans no interior dos partidos políticos