Vamos deixar o mito em 2018?
A partir das trocas que tivemos em 2018 com as candidaturas de mulheres negras, dos nossos trânsitos nos espaços de debate político e dos acúmulos prévios sobre a temática, produzimos uma série de cards sobre os mitos que são disseminados na relação entre mulheres negras e política.
A série compõe nossa primeira experiência com dados e narrativas e foi idealizada como ferramenta para superarmos parte das barreiras que impedem mais mulheres negras de atuarem na política institucional.
1 - Negros não votam em negros
A Justiça eleitoral não faz recorte racial do eleitorado, o que impossibilita uma análise que conecte diretamente eleitores negros e candidatos negros. O perfil demográfico da zona que a candidata foi mais votada não é uma leitura suficiente para esta afirmação. Analisemos os mapas de votação da Benedita da Silva e Marielle Franco de 2014 e 2016, respectivamente. Benedita da silva teve votação em todas as zonas eleitorais do estado do Rio de Janeiro, 249, e Marielle Franco teve votação em todas as zonas eleitorais da cidade do Rio de Janeiro, 97. Elas chegaram tanto em colégios eleitorais de maioria negra, quanto nas regiões mais brancas.
Olhando para as zonas eleitorais onde as duas tiveram mais votos, Benedita da Silva alcançou 2.227 votos na zona eleitoral de São João da Barra e Marielle 2.237 votos na zona eleitoral de Cosme Velho e Laranjeiras. Mesmo que estas duas zonas possuam um perfil demográfico diferente. São João da Barra, Cosme Velho e Laranjeiras poderiam ter votos apenas de pessoas negras, em um cenário hipotético.
Por isso, em um processo eleitoral é fundamental analisar o nível de visibilidade, financiamento e estratégia política e comparar candidaturas com trajetórias e partidos diferentes antes de fazer afirmações raciais genéricas.
2 - Não existe relação entre ser mulher negra e defender direitos humanos
70% das mulheres negras eleitas para a Câmara Federal em 2014 são filiadas aos partidos que defendem os direitos humanos. De acordo com a avaliação dos partidos feita em 2018 pelo coletivo #MeRepresenta, a maioria das deputadas federais negras estão inseridas em partidos com classificação de 100 a 90, maior faixa de aproximação com as pautas de direitos humanos.
Nesta avaliação, leva-se em conta a votações em pautas como: redução da maioridade penal, população LGBT e direitos reprodutivos. Valoriza-se também a participação em bancadas mais ou menos pró direitos humanos.
3 - Existem poucas mulheres negras eleitas porque elas não se candidatam
O universo de mulheres negras candidatas é próximo ao número total de mulheres brancas candidatas. Contudo, nas eleições de 2014, mulheres negras foram 12,6% das candidaturas a deputado federal, mas apenas 1,9% das eleitas. Enquanto que as mulheres brancas foram 16,4% candidatas a deputadas federais e 8% das eleitas. Ou seja, mulheres brancas têm 3,2 vezes mais chances de ganhar uma eleição do que mulheres negras.
Mesmo que o avanço da Lei de Cotas para candidatas mulheres tenha impactado o número de candidatas negras e brancas, as barreiras de elegibilidade para as mulheres negras permanecem superiores.
4 - Mulheres negras, se eleitas, só defenderiam pautas de mulheres negras
As principais pautas defendidas por organizações de mulheres negras mostram que mulheres negras têm uma preocupação global com a comunidade. Desde segurança pública, nos grupos como as Mães de Maio, até práticas de humanização da saúde e autocuidado, com o Projeto Psicopretas. As pautas tradicionais dos movimentos de mulheres negras apresentam uma visão universalista e ampla para combater os problemas da sociedade. Como escreveu Angela Davis, “quando uma mulher negra se move, toda a estrutura se move junto com ela”. Mesmo assim, se mulheres negras eleitas “só defendessem pautas pautas de mulheres negras”, estaríamos defendendo pauta de mais de 27% da população.
5 - Não quero votar só porque a mulher é negra, quero votar em um bom candidato independente do gênero e da raça
Uma democracia forte é uma democracia que tem diversos setores da sociedade representados de forma equilibrada. Esquecer do gênero e da raça na hora de votar, é acreditar que todo mundo concorre em condições de igualdade. As mulheres negras, em 2014, foram minorias nas corridas com mais visibilidade, 4,7% das candidatas ao cargo de governador e 6,6% das candidatas ao Senado Federal.
Nas eleições de 2014, as mulheres negras gastaram R$116,72 milhões em suas campanhas, exatamente 31 vezes menos que os homens brancos na mesma eleição. A desigualdade entre as candidaturas atrapalha pessoas como você, que só quer um bom candidato. Como vai conhecer uma candidatura de mulher negra se ela mal consegue chegar até você por falta de visibilidade, financiamento e estratégia política? Boas candidatas acabam ficando fora do seu radar porque a estrutura não deixa.
6 - Movimentos de mulheres negras não são articulados na política institucional
A tentativa de diálogo com a política institucional ao longo da história é bem forte. Gerações e gerações de mulheres negras buscaram criar suas carreiras nesses espaços. Um bom exemplo foi a atuação de mulheres negras no processo de redemocratização, protagonizando as agendas dos movimentos negros da constituinte. No estado do Rio de Janeiro, mulheres negras ativistas participaram de processos eleitorais desde o início da redemocratização. Como foram o caso de Lélia Gonzalez, Benedita da Silva, Jurema Batista e Marielle Franco.
7 - Mulher negra só ganha eleição com votos de regiões de elite branca
Esse dado na verdade não existe, a justiça eleitoral não faz recorte racial do eleitorado. Você pode intuir que apenas com o perfil demográfico da zona eleitoral que a candidata foi mais votada é possível determinar se os votos foram negros ou brancos. No entanto, o tamanho da população negra é decisivo para desmistificar essa afirmação. Mesmo que a população negra tenha maior concentração em certas regiões, ela constitui um grupo expressivo em todos os territórios.
Por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro, a população negra é de 48% e mesmo na região mais rica da cidade, na Zona Sul, a população negra é de 17% dos habitantes. Se uma candidata tiver 10% de votos nesta região, os 10% poderiam ser apenas de eleitores negros, e isso poderia ser determinante na corrida para o Legislativo, por exemplo. Mais uma vez, o que mais falta para candidaturas de mulheres negras são os recursos necessários para realizarem uma campanha com grande abrangência territorial.
8 - Mulheres negras não têm formação para ocuparem cargos de poder
35% das mulheres negras candidatas nas eleições de 2014 possuíam ensino superior. Porém, existe uma barreira maior de elegibilidade para as mulheres negras que não têm ensino superior. Enquanto homens brancos com ensino médio incompleto conseguem se eleger, nenhuma mulher negra com ensino médio incompleto conseguiu ganhar uma eleição. 78% das mulheres negras eleitas tinham ensino superior. Ter ensino superior é quase que uma outra regra para mulheres negras se elegerem. Mulheres brancas e homens conseguem se eleger mais apenas com o ensino médio completo. Para mulheres negras chegarem no mesmo lugar do homem branco, ela tem que ter anos de estudos a mais.